sábado, 21 de janeiro de 2012
O Brasil não conhece os limites do abuso sexual
Especialistas explicam que, apesar do rigor da lei, desconhecimento prejudica vítimas. No caso da suspeita de estupro no BBB, inquérito e processo não dependem da vontade de Monique para prosseguir
Cecília Ritto, do Rio de Janeiro
As mudanças na tipificação penal de crimes sexuais feitas em 2009 no Código Penal Brasileiro colocam o país como um dos mais severos no tratamento desse tipo de violência. Mas, como mostram as reações do público diante das suspeitas de abuso sexual na edição de domingo do Big Brother Brasil, da Rede Globo, o padrão nacional ainda é o de desconhecimento da lei e dos limites do que é estupro. A lei brasileira considera estupro, por exemplo, o beijo forçado que é aplicado em uma noitada, ou constrangimentos contra os quais a vítima não possa se defender. Apesar do rigor do texto, o entendimento da maioria da população parece congelado na interpretação de que só com penetração há o crime.
Em 2009, houve duas grandes mudanças no Código Penal no que diz respeito a crimes sexuais. Até então, era considerado estupro apenas quando havia conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça contra a mulher. Qualquer outro ato libidinoso entrava na classificação de atentado violento ao pudor. Há três anos, foi feita a reforma do artigo, e o que era atentado violento ao pudor passou a integrar a figura jurídica do estupro. Ou seja, um beijo lascivo em alguém sem o consentimento passou a ser considerado estupro. Nas mudanças pelas quais passaram o código, outra parece complicar a vida de Daniel do BBB. No ano de 2009 foi criada a tipificação do estupro de vulnerável, detalhada pelo 1º parágrafo do artigo 217-A do Código Penal.
O texto estabelece que é estupro o ato libidinoso praticado contra “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. E é pela falta de poder de reação de Monique que Daniel poderá ter que responder judicialmente. É esse o objetivo do inquérito da 32ª DP (Taquara), aberto a partir de um movimento nas redes sociais que pedia a saída de Daniel. O público assistiu, no pay per view do Big Brother, aos movimentos do rapaz sob o edredom, enquanto Monique parecia imóvel, inconsciente.
A polícia quer saber se Monique esteve inconsciente em algum momento sob o edredom, enquanto Daniel a acariciava. Os dois negaram que tenha havido sexo, admitiram as carícias e Monique disse que “tudo o que fez foi consentido”. Como restam possibilidades de ela não estar o tempo todo consciente, o inquérito prossegue – e não depende de Monique querer registrar queixa contra Daniel. Ele, por enquanto, é tratado como testemunha no caso, sem ser indiciado.
O grau de embriaguez de Daniel não faz diferença: a menos que ele tivesse bebido sem vontade própria, o suposto agressor responde integralmente pelo que causou. Para Monique, há diferença. “Primeira hipótese: realmente praticou ato libidinoso e não se lembra. Se não se lembra, a culpa não é de Daniel, e isso não configura crime. Segunda possibilidade: não se lembra porque não esboçou vontade. Nesse caso, pode ser estupro de vulnerável”, explica a defensora pública Sula Omari, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência da Defensoria Publica do Estado do Rio.
A pena para o estupro de vulnerável é de 8 a 15 anos, maior do que o estupro comum (de 6 a 10 anos), porque a vítima não pode se defender. “Penalmente, é mais grave apalpar o seio do que cortá-lo com uma faca. Isso porque apalpar pode ser estupro. Cortar é uma lesão corporal grave, cuja pena varia entre 2 a 8 anos”, explica Artur de Brito Gueiros, professor de Direito Penal da UERJ e Procurador da República
Desinformação – Segundo Sula Omari, é grande a desinformação sobre o que é estupro. “Muitas mulheres não sabem que estão sendo vítimas de abuso sexual”, afirma. É comum chegar à Defensoria casos de mulheres casadas que praticam sexo coagidas pelo marido. E isso pode envolver também a violência moral. “Há uma cultura equivocada de que a prática sexual é obrigação do matrimônio, e as mulheres acabam praticando sem vontade quando os maridos as coagem”, explica a defensora, lembrando que esses casos podem ser considerados estupro.
A delegada Soraia Vaz de Sant'Ana, titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM/Belford Roxo), vivencia a mesma dificuldade de Sula. “Elas têm noção de que ser bolinada contra a vontade é crime. Mas muitas vezes não sabem que foram estupradas. Muitas mulheres acham que o marido querer ter conjunção carnal contra a vontade delas é um direito dele. Se houver recusa, ela está sendo estuprada”, afirma Soraia.
A diferença na consequência para quem comete um estupro de vulnerável e não o estupro “comum” vai além do aumento de pena. Nesses casos, a vítima não precisa iniciar o processo de queixa. O inquérito é aberto independentemente da vontade da vítima. Por exemplo, se a polícia concluir o inquérito do caso do BBB e entender que houve abuso sexual, o caso será encaminhado ao Ministério Público, que oferecerá denúncia, mesmo se Monique não processá-lo.
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